Para a seção Transe, Caio Carpinelli apresenta uma instalação e um conjunto de quatro pinturas que atualizam seu interesse pela dimensão metafísica da cor. Afeito tanto às experimentações físicas quanto às investigações artísticas de nomes como Michael Heizer e Gerhard Richter, o artista instaura em seu espaço um ambiente controlado, que dubiamente evoca e rejeita o laboratório e a galeria – ambas instituições carregadas de uma sacralidade discursiva. Mediante o uso de apenas três elementos – o algodão cru, o gesso preparador e uma camada generosa de tinta a óleo preta –, Carpinelli convoca para o centro de sua discussão a vibratilidade da cor, o fenômeno ótico da apreensão das formas e a agência do corpo que circunda a instalação de grande formato.
Na série de pinturas “Lete” (2025), o corte precede a pintura: seccionando a tela em cinco faces obtidas ora a partir da regra 3÷3, ora da proporção áurea, o artista constrói uma forma em perspectiva que converge para o centro. A tinta a óleo então entra em cena, cobrindo as áreas em pinceladas repetitivas, obsessivas em esconder o próprio rastro. Se porventura a membrana escura oculta as linhas do observador mais desatento, suas arestas ludibriam os sentidos e fazem lembrar chapas de aço – algo como observar pelo avesso os cubos de Tony Smith, a partir de dentro. O título Lete, palavra em grego antigo para “esquecimento” e oposto complementar de Aleteia, “verdade”, conduz a uma discussão sobre a natureza ambivalente da pintura: ao mesmo tempo em que encena uma ficção acerca do que está para além de sua superfície, é também materialidade encarnada. Ao passo que expõe a ferramenta mestra que sustenta a farsa figurativa, Carpinelli disseca sua função no ensaio de uma abstração. Novamente, um duplo.
![]()
Caio Carpinelli. Dupla Fenda, 2025. Pigmento em pó preto sobre algodão, estrutura de MDF naval, revestida de algodão cru, gesso e óleo. 200 x 200 x 5 cm (tela) / 201 x 40 x 40 cm (3 colunas/cada)
|
![]()
Caio Carpinelli. Lete, 2025. Oil on canvas, 100 x 80 cm.
|
A dissecção prossegue na instalação “Dupla Fenda” (2025), onde três colunas se erguem frente a uma tela de grandes dimensões – esta, novamente seccionada, mas agora a partir de uma forma circular, ao centro, que separa o revestimento em tinta preta nas margens da composição, reservando o tecido cru ao núcleo. O mesmo princípio opera nas colunas: suas faces internas e paralelas se revestem em matéria escura, similar à lógica pictórica de Carpinelli, com uma única exceção: aqui, elas carregam os sulcos e obstruções de uma espessa camada.
A instalação ensaia as condições do experimento físico da dupla fenda, realizado pela primeira vez por Thomas Young em 1801, onde a natureza dual dos elétrons (posteriormente estendida a átomos e moléculas) é percebida pela primeira vez. Um dos testes basilares da mecânica quântica, ele descreve como partículas, que podem se comportar tanto como ondas quanto como feixes, alteram sua propagação de maneiras randômicas – e como o simples ato de observar seu comportamento influencia essa escolha. Tal assombro sugere que a observação não é um ato passivo, mas que desempenha um papel na criação da realidade que experimentamos.
Tal afirmação parece dobrar a condição da obra de arte no contexto contemporâneo, onde trabalhos de artistas do sul global são lidos na esteira das estruturas sociais e geográficas que envolvem seus criadores. Em um sentido mais amplo, apresenta a criação poética como um pêndulo que flutua entre a figuração e a abstração – ou, como me apontou o artista certa vez, como um “emaranhado abstrato que, por vezes, se confirma no ínfimo feixe da forma que chamamos de figuração”. No girar desta roleta, a cor para Carpinelli é tanto índice da pincelada como imagem de morte e vida – o cheio de cor que convoca o eu da presença, e sua subsequente ausência no vazio da forma.
Lucas Albuquerque