SP–Arte Rotas 2025
Seção Transe – Fernão Cruz
Fernão Cruz
Fernão Cruz. Respiração Parada, 2025. Papelão, madeira, poliestireno, tecido, PVC, cola, pigmento. 115 x 180 x 25 cm
Vinte e sete de agosto de vinte25

Para a seção “Transe, o artista lisboeta Fernão Cruz apresenta Liame, conjunto de obras em que objetos de uso cotidiano invocam fantasmas de um corpo: vestimentas, lençóis e dispositivos de mobilidade encontram membros humanos e outras protuberâncias. Léxico material recorrente em sua produção, as peças de vestuário são coletadas em brechós e descartes ao longo das cidades em que habita. Misturadas às suas próprias peças, elas são então cristalizadas em formas tridimensionais, ora presas a um anteparo, ora emancipadas no próprio espaço. Quando não surgem como padronagem, as roupas servem como molde para a criação de esculturas antropomórficas, gerando, deste modo, um corpo quimérico que costura os antigos donos e o próprio artista. Verdadeira imagem do Liame, expressão popular portuguesa que denota os vínculos entre pessoas e coisas.

Produzidas todas em solo paulistano, experiência inédita na carreira do artista, é incontornável afirmar que as diferenças do vestuário brasileiro e as impressões culturais carregadas por cada objeto são um dado relevante. Contudo, interessa mais a Fernão as camadas subjetivas ativadas na construção de um sujeito corporificado em sua poética, na qual se imprimem ecos de desejo, luto, prazer e repressão. Neste sentido, o objeto encontra o abjeto: despindo-nos de uma leitura funcional e social do primeiro, o abjeto — tal como o define de maneira canônica a filósofa e analista Julia Kristeva — é aquilo de que nos devemos livrar para nos tornarmos um eu. Trata-se de uma substância fantasmática que congrega qualidades de estranhamento e intimidade, perturbando divisões entre o interno e o externo, o corpo materno e a lei paterna, o espacial e o temporal.

Fernão Cruz. Lençol de água, 2025. Papelão, madeira, poliestireno, tecido, cola, pigmento. 80 x 50 x 30 cm.
Fernão Cruz. Aperto de Sombra, 2025. Papelão, madeira, poliestireno, tecido, cola, cordas, pigmento. 98 x 78 x 18 cm.

A partir desta leitura, é notável como as esculturas apresentadas reúnem – por vezes em uma mesma obra – orifícios dotados de desejo e cancros que se reproduzem desordenadamente; genitais assexuadas que ora se escondem do observador, ora o encaram de maneira obscena; sulcos de corpos que marcam o suporte e se presentificam a partir da ausência, enquanto outras anatomias se expandem a tal ponto que a diferença entre figura e fundo se torna difusa. Além disso, a marca do luto invade a sala, pungente nos restos de vestuário que nos levam a indagar se seu destino foi selado pelo descarte do que já não se faz mais necessário ou do necessário que já não se faz presente. Entre a travessura edipiana e a perversão infantil de Liame, Fernão navega por tais eixos preservando as camadas de silêncio e segredo, adicionando cá e acolá suas próprias memórias por debaixo dos tecidos – como quem se esconde no lençol à noite para se proteger do escuro.

Outra importante camada de significado é, ainda, anterior à própria composição dos trabalhos: trata-se da moldura das esculturas, sempre confinadas em caixas que delimitam sua área. Se, ao início, tal castração é elemento soberano para o fazer escultórico, sua incorporação como dispositivo simbólico agora faz as vezes de gavetas que se abrem ao olhar do outro. A intimidade é violada, assim como a morte – seja ela real ou ficcional, pouco importa – viola a propriedade dos itens abandonados que agora formam os objetos. É, portanto, da clausura que nasce a beleza da poética do lisboeta: o corpo, ainda que contido, transborda, narra, seduz e assombra; como nós, que nos movemos apesar de tudo.

Lucas Albuquerque

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LUCAS ALBUQUERQUE