SP–Arte Rotas 2025
Seção Transe – Marlan Cotrim
Marlan Cotrim
Marlan Cotrim. É na descida da ladeira tem água que molha pé, 2025. Óleo e pastel sobre tela, 95 x 135 cm.
Vinte e sete de agosto de vinte25

Para a seção Transe, a artista de origem goiana Marlan Cotrim apresenta uma série de telas que flutuam entre a escrita e a paisagem. Construídas sobre um fundo a óleo sobreposto por um tremeluzente relevo feito em pastel, carvão, nanquim ou óleo,  as composições nascem de uma relação íntima entre o pincel e um corpo em desobediência – que carrega consigo anos de estudo e prática no campo da dança, ofício ao qual Marlan dedicou mais de uma década de sua vida. Refutando qualquer sugestão de uma pintura de observação, suas composições mais se assemelham a um eletrocardiograma: registram as cadências e interrupções de um organismo ao passo em que a superfície do suporte é marcada. Se há alguma relação indicial entre significado e significante, ela se oferece unicamente como a topografia de um organismo em transição e movimento, turbulento e caudaloso.

Os primeiros experimentos em torno da técnica nascem na passagem entre a dança e a pintura, quando a artista passa a registrar os movimentos de seu cotidiano usando lápis e caneta. Logo, o gesto rápido e irregular já não dependia de um impulso externo, tornando-se força motriz de um pulso insaciável. O traço conquista o suporte pictórico às avessas, unindo a vontade de inscrição com a prática em moda, que tornou Cotrim íntima da composição e qualidade dos tecidos utilizados. Na fusão entre dança, vestuário e pintura, emerge o interesse por texturas e ritmos que encontram sua nascente no corpo e caminham para a construção de seu próprio entorno, formando mundos perecíveis para a execução de uma coreografia.

Marlan Cotrim. Desviadouro, 2025. Óleo, carvão e pastel oleoso sobre tela, 130 x 130 cm.
Marlan Cotrim. Tempo de montanha, paciência de lago, 2025. Carvão e nanquim sobre camurça, 130 x 130 cm.

Desse modo, a produção de Marlan problematiza a relação entre imagem e gesto ao se cristalizar justamente no entremeio dessas duas aparições: enquanto a identificação de relevos e horizontes sugere a formação de uma paisagem imaginada, ficcional, de um corpo que reclama a instauração de um ambiente para seu sustento, a observação dos caminhos de feitura de cada composição aproxima a prática da artista não da imagem, mas da escrita de uma partitura. As telas desafiam uma compreensão puramente visual, convocando ao movimento: tratam-se de inscrições feitas para serem lidas como braille, refazendo os passos de um percurso em continuidade e mudança. Para aqueles que se atêm à primazia do olhar, a cor convida à recriação da melodia que acompanha a coreografia, estabelecendo analogias que remontam aos usos sinestésicos da cor em Giuseppe Arcimboldo (1526 – 1593) e aos experimentos de Louis Bertrand Castel (1688 – 1757).

Em divergência aos antigos teóricos da sinestesia, Cotrim não busca uma escala universal em que cor, som e movimento possam ser traduzidos em equivalências. Abertas à própria ambiguidade, suas obras mimetizam a relação ética da artista com seu próprio corpo. Suas telas desestabilizam a imagem justamente por não desejarem ser nada além daquilo que são: rastros de energia, dissipados no ato de sua feitura, mas ainda contidos na matéria de cada linha que forma o solo movediço de sua pintura.

Lucas Albuquerque

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LUCAS ALBUQUERQUE