Para a seção Transe, a argentina Emilia Estrada pousa seu desenho na lua em um gesto revisionista e fabular. Na série Andalucia, a artista estabelece uma leitura comparativa sobre as cartografias lunares e as expansões imperialistas europeias, analisadas através de um olhar migrante. Popularizado no século XVII à serviço da divulgação científica, os mapas lunares, tal qual os terrestres, são frutos de seu próprio tempo e espaço político e social, destacando-se por suas diferenças no que tange ao mapeamento de sua superfície, relevos, composição e nomenclatura – este último de especial interesse para a artista. A associação de nomes que designam zonas lunares e projetos nacionalistas reflete modos de apropriação celestial moldados por negociações e aspirações, muitas vezes manifestando-se como projeções ambíguas. É este o caso de seis crateras nomeadas em memória de antigos astrônomos de Al-Andalus, atual região entre Espanha e Portugal ocupado pelos muçulmanos durante os séculos VIII e XV. Estrada enlaça territórios ao trazer à tona mitos relacionados à fundação da cidade de Córdoba, Argentina, sua cidade natal: fundada em 1573 como Córdoba de la Nueva Andalucía, foi nomeada pelo colonizador espanhol Jerónimo Luis de Cabrera em honra à promessa feita à sua esposa e como homenagem à terra de origem de sua família, “onde as pessoas são altas e morenas, como na Andaluzia”.
Em grandes tecidos de linho, a artista desenha as crateras lunares Arzachel, Ibn-Rushd, Alpetragius, Al-Bakri, Ibn Firnas e Geber partindo de sua observação fotográfica para, logo em seguida, se desprender delas em um espaço poético onde o mapeamento gráfico e a ficção científica se encontram. Curiosamente, a solidez do carvão é esmaecida em gestos expansivos que são, logo em seguida, sobrepostos por camadas de folha de ouro que se repetem, também, nas bordas do desenho, criando uma moldura que emprega motivos geométricos hispânico-árabes oriundos de Alhambra; e dos guardas pampa, tradicionalmente associados às culturas indígenas argentinas. Aliado aos padrões decorativos (em suma, florais) dos tecidos usados como molduras das peças da artista, o jogo de transparência, opacidade, imagem e leitura simbólica borram a distinção entre figuração e abstração, território e símbolo, brilho e opacidade. Seja através da materialidade concreta dos trabalhos ou de sua temporalidade movediça, a Lua é multiplicada pela artista como se vista a partir de um espelho fragmentado, fractal, onde a agência humana a torna enclausurada nos desejos de uma época própria, cada vez mais distantes do referente original.
A Lua em si pode não ter mudado, mas os humanos em diferentes épocas e lugares a viram à luz de seu próprio tempo. Desde suas observações pré-históricas e divinatórias, passando por sua correlação medieval com os humores humanos, até as primeiras imagens cinematográficas da lua e de seus habitantes – os Selenitas – de Meliès, aos programas exploratórios da URSS e dos EUA durante as décadas de 50 a 70, a Lua foi permeada por diferentes condições hierárquicas para com a terra e seus habitantes. Em seu trabalho, Estrada elege como questão o momento em que tal relação é condicionada a partir das lógicas do Plantationoceno – período em que a exploração colonial torna o planeta um mercado de recursos e que, como vemos, a Lua se torna mais um reduto, espelhando os processos colonizatórios a partir das instituições dedicadas ao seu mapeamento.
Lucas Albuquerque